Ricardo Cabral vem há pelo menos um ano a defender que é inevitável que Portugal opte por uma reestruturação da sua dívida, pública e privada. Devê-lo-ia até ter feito antes de recorrer ao plano de ajuda da UE e FMI.
O professor da Universidade da
Madeira, doutorado em economia industrial, tem no último ano dedicado especial atenção à sustentabilidade do endividamento publico e privado Português. Concedeu esta entrevista ao Negócios por e-mail na quinta-feira.
Mesmo recorrendo ao FEEF e FMI, uma reestruturação da dívida (privada e pública) portuguesa é inevitável a médio prazo?
Na prática é inevitável. Só não o seria se o pagamento de parte da mesma fosse assumido pela UE. Isto porque o nível de endividamento externo líquido é muito elevado relativamente à dimensão da economia. Essa dívida cresce a taxas mais elevadas que a economia e só pode ser paga com receitas de exportações. Os nossos desequilíbrios externos são substancialmente piores do que os da
Argentina em 2001, ano em que esta entrou em incumprimento. Os precedentes históricos sugerem que essa dívida é tão elevada que não será integralmente paga, i.e., terá de ser reestruturada.
As questões que agora se colocam são quanto tempo terá de decorrer para que se reconheça esse facto e quais os custos para o país dos programas de ajustamento que serão entretanto tentados.
Uma reestruturação/reescalonamento da dívida é desejável do ponto de vista de crescimento económico a prazo?
Entendo que sim e que é desejável que se faça o mais cedo possível. Só que é necessário negociar previamente com os credores e com os nossos parceiros europeus e implementar a legislação e instrumentos de forma a assegurar que os efeitos negativos da reestruturação na economia sejam minimizados. Após o choque inicial da reestruturação, que deverá provocar uma curta mas abrupta
recessão, haverá como que uma lufada de ar fresco na economia.
A economia nacional passará a registar taxas de crescimento económico significativas, crescimento do emprego, défices orçamentais muito mais reduzidos e, pelo lado negativo, aumento da inflação. A Argentina, registou recessão abrupta em 2002, mas entre 2003 e 2010 cresceu a uma taxa real média de 7,6% ao ano. A Argentina implementou vários programas inovadores para lidar com a crise que deveriam ser analisados em detalhe.
Porquê que uma reestruturação/reescalonamento da dívida é desejável do ponto de vista de crescimento económico a prazo?
Por três motivos. Em primeiro lugar, os juros que pagamos ao exterior sobre essa dívida (4,6% do PIB em 2010, aproximadamente equivalente às importações de energia, tendência crescente) são subtraídos ao rendimento disponível nacional provocando uma redução de actividade económica doméstica. Em segundo lugar, após essa reestruturação de dívida, o país terá muito mais dificuldade em financiar importações e, em resultado, o défice comercial cairá abruptamente (quem vende a Portugal não estará disposto a vender se o país não for capaz de pagar).
Finalmente, o aumento do desemprego que resulta do sobre-endividamento – que se verifica já em Portugal desde o inicio da última década – tem como consequência um aumento substancial da emigração e um desperdício de capital humano. Desses efeitos resultam reduções da procura e do PIB e, no futuro, uma redução da taxa de crescimento potencial da economia.
Claro que o processo de ajuste externo tem de ser bem planeado, com ponderação das alternativas e participação dos principais intervenientes internos, de forma a criar os instrumentos necessários para gerir o processo e, sobretudo, para negociar um acordo com a UE,
BCE, FMI e outros credores.
Faz sentido pensar numa reestruturação como uma forma de melhor repartir o esforço do ajustamento entre credores e contribuintes?
Exactamente. Os credores exerceram o seu livre arbítrio ao optarem por emprestar ao estado e a empresas portuguesas. Assumiram um risco ao fazê-lo e, por isso, deverão assumir parte dos custos da reestruturação, se o país não tiver capacidade de pagar a sua dívida externa na totalidade.
As taxas de juro que foram exigidas à Grécia e à Irlanda são demasiado elevadas? Contribuem elas próprias para um “default”?
As taxas de juro são demasiado elevadas pela seguinte razão: Portugal, Grécia, Irlanda,
Espanha, e vários países da
Europa de Leste têm dívida externa demasiado elevada.
A dívida externa dos países supracitados é muito elevada em relação ao PIB. As taxas de juro elevadas exigidas no pacote de ajuda da UE/FMI fazem essa dívida externa crescer a uma taxa muito superior à taxa de crescimento da economia.
Dívida externa é diferente de dívida doméstica, como aliás referia Adam Smith na sua “Riqueza das Nações” de 1776. O país não fica mais pobre ao pagar juros se a dívida for doméstica, dado que a despesa com juros de uns (e.g. Estado) constitui rendimento de residentes, que é poupado ou gasto em larga medida no próprio país. Contudo, se essa dívida for externa, o pagamento de juros empobrece o país.
Uma frase erroneamente atribuída a Einstein diz que o juro composto é a força mais poderosa do universo. É talvez um exagero, mas tem algum fundamento: juro composto resulta em crescimento exponencial.
Portugal pode e deve usar o cenário da reestruturação como mecanismo de negociação da taxa de juro?
Portugal fez um pedido formal de ajuda à UE e ao FMI. As condições da ajuda são ditadas pela UE/FMI e a posição dominante nestas instituições, em particular do BCE, não favorece esse cenário (O BCE enfrenta conflito de interesses por ser um dos principais credores de Portugal, Grécia e Irlanda).
Contudo, embora realisticamente pense que a opção reestruturação está fora da “mesa das negociações” dado o pedido formal de ajuda que foi feito, continuo a pensar que os líderes políticos nacionais deviam considerar essa alternativa para procurar negociar o melhor acordo possível para o país (taxa de juro, prazos e outros aspectos importantes do pacote de ajuda).
Enquanto decorrem essas negociações, existem ainda alguns instrumentos financeiros a que o país pode recorrer para responder às dificuldades de financiamento e cumprir com as obrigações financeiras nacionais no curto prazo. É necessário negociar o acordo de ajuda com muito rigor. Esse rigor exige tempo para a análise detalhada das consequências do programa de ajustamento e das condições do pacote de ajuda.
Vale a pena relembrar aqui uma frase atribuída a Keynes: “Se deve 100 libras ao banco, você têm um problema. Se deve um milhão de libras, o banco tem um problema”. Portugal tem uma dívida externa líquida (pública mais privada) de cerca de 150 mil milhões de euros (excluindo dívida associada a Investimento Directo Estrangeiro). Portugal deve ter presente que os seus credores também têm um problema.